Carta de um espírito materialista




Meu caro investigador,
 
Este epíteto - espírito materialista - justamente lhe parecerá uma contradição entre termos.
 
Em última análise, também lhe parecerá igualmente estranho que eu escreva depois de ter sido devorado, mas nada lhe posso adiantar a este respeito, a não ser que a vida para além da morte sofre de muitas e variadas incongruências, entre as quais esta mesma.
 
Muita gente morre ao cair na banheira, da cama abaixo, com um ataque de tosse. Muita gente morre sozinha em casa e é descoberta muito tempo depois.
 
Os japoneses inventaram uma palavra para este tipo de morte - kodokushi.

Excelente palavra!

Mas também existem aqueles que, sofrendo do síndroma de Cotard ou delírio do cadáver ambulante, acreditam estar mortos, mesmo estando vivos.

Foi o caso de Mademoiselle X, que dizia não ter cérebro, nem nervos, nem peito, nem estômago, nem intestinos, e que morreu de fome, pois cria que não tinha necessidade de comer.

Não é o meu caso, porém.

De resto, você deve saber também que há certos animais que não envelhecem nem morrem naturalmente, pelo menos como nós os humanos, e que podem rejuvenescer eternamente, em certas condições especiais.

É o caso das medusas que rejuvenescem quando as condições adversas do seu ambiente não lhes permitem, nem ter sexo, nem reproduzir-se.

Não concorda em que se trata de uma bela natureza?
 
Mas não lhe escrevo para debitar uma lista de banalidades que são mais ou menos do senso-comum.

O que lhe quero dizer é uma coisa muito especial.
 
Você sabia que, três dias depois de morto, as enzimas que estavam presentes na sua última refeição começam a devorar o seu corpo?

Protease, carboidrase, lípase, nuclease, maltase...

E, nos seus intestinos, que essas inúmeras colónias de bactérias com as quais convivia pacificamente, que são elas quem contribuirá para a sua auto-devoração?

Bife às lascas, filetes de linguado com limão, tornedó rossinni, beringela recheada, bacalhau à lagareiro, massa carbonnara, camarões em polme estaladiço, sushi com manga...
 
Depois de tudo o que devorámos, seremos enfim devorados pela nossa última refeição...
 
Ai!... Estes inócuos bicharoquinhos!...
 
Não concorda em que é verdadeiramente humorística a justiça que rege a matéria viva do cosmos?


 
 
 
 
 
 






 

Morangos Silvestres



É verdade, meu amigo, que a morte não é esta cidade deserta com as janelas de todos os prédios entaipadas. Os nossos passos não ressoam no vazio de todas as ruas desertas sem ninguém. E as portas não estão todas fechadas. Na morte, o nosso sobretudo não nos pesa. A morte não é o relógio sem ponteiros que marca o tempo sem tempo de toda a eternidade. Meu amigo, consola-te. A morte não é a cidade de Hiroshima em escombros, nem o silêncio de tudo o que está morto e não mais respirará nem falará. Sonhas que a morte é o único habitante da cidade silenciosa e deserta dos teus medos, mas ela não é esse homem que está de costas. O seu rosto não tem olhos, nem boca, nem nariz, nem nada de humano que fale contigo. Que rosto tremendo!... Mas não é verdade. É só um mau sonho, meu amigo. Agora estás muito velho e gostarias de ser embalado como aconteceu há tanto tempo, nos braços de tua mãe?... Agora que andas tão devagar é que tens saudades de tudo o que te aconteceu?... Que forte que é o desejo de que as nossas mães não se tornem empedernidas como granito e opacas como a escuridão!... Mas garanto-te que a morte não é o carro fúnebre que avança sem condutor, com cavalos que correm às cegas. Tens medo que não haja ninguém para te chorar?... Chegou a tua hora, e morres sozinho?... Morre-se sempre sozinho, mas pelo menos não serás enterrado vivo dentro de um caixão forrado de seda. Ninguém quer ser enterrado enquanto estiver vivo. Meu amigo, garanto-te que a morte não é esse terrível tribunal onde descobrimos que nunca aprendemos nada, que tudo o que fizemos foi errado e em que agora as mulheres e os homens que nos desampararam e traíram por toda a eternidade se riem de nós. Não estamos assim tão desamparados diante de toda a crueldade do universo, nem seremos eternamente humilhados nas nossas fraquezas infinitas. 
 
Consola-te, meu amigo.

Porque a morte é só a visão eterna, intacta, cristalina, de tudo o que mais amámos na vida com a mais pura esperança e alegria. Essa rapariga, esse rapaz, essa criança, esse lago e até os morangos silvestres da nossa infância, essa pacata e breve cena doméstica em que fomos as discretas e humildes testemunhas do amor dos nossos pais.
 
Nessa visão é que iremos um dia como num barco à vela, uma nave muito antiga e milenar, nós, os passageiros beatos, pela espuma inefável da vida eterna.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Carta de um espírito singular




Meu querido amigo, que não cheguei nunca a encontrar em vida, nem conhecer,

Sou um destes espíritos singulares que, recebendo a notícia de todo o seu interesse e mesmo da sua obsessão pela vida para além da morte, foi subitamente tomado de compaixão e decidiu escrever-lhe.

O esforço de escrever é porém tão contrário à minha natureza actualmente difusa que esta missiva terá de ser muito breve. Nem poderá você alguma vez publicá-la - e as razões para esta proibição tornar-se-ão imediatamente evidentes.

Em primeiro lugar, fique sabendo que morrer é a melhor coisa que existe, ainda que se morra no maior e no mais terrível sofrimento. Ainda que lhe cortem os braços e as pernas, um a um, e o deixem de olhos abertos e alerta enquanto o façam, morrer há-de ser uma alegria extrema e com uma qualidade inigualável.
 
Você não sabe, mas, comparada com a morte, a vida é um apertado colete de forças, uma rede de angústias e uma lenta e dolorosa intoxicação da alma e do corpo. Contra todas as aparências, os opiómanos, os cocainómanos e os alcoólicos são os que menos se intoxicam, afinal. Porque entre os vivos são aqueles que de mais perto experimentam a bela sensação da morte, esta indescritível viagem. É por isso que eles sofrem tanto para se pôr de novo em pé, quando se levantam do seu íntimo e invisível sobrevoo. Mas a diferença é que, para a morte, não há acordar. A morte é, enfim, a perfeita plenitude.

Como lhe hei-de explicar, meu querido amigo? A morte é só uma infinita diluição, como ser muito menos que uma gota de água, talvez ainda menos que uma partícula. Você talvez não saiba, mas é tão bom participar como um quase nada na ampla corrente veloz e sempiterna. Imagine que você se dilui, como um feixe de pequenas sementes num campo de flores. A morte é só um sobrevoo absoluto e infinito, como uma expansão abstracta sem intervalo.

Adeus.

Regresso à minha qualidade ínfima e volátil, que não admite palavras e muito menos um nome próprio.


Giorgiana Houghton, «Invisible Beings», 1874
 

Prefácio



Meu caro e estimado leitor,


Coligi, ao longo de muitos, morosos e largos anos, todos estes registos que aqui generosamente exponho, com o intuito totalmente gratuito de informar a espécie humana sobre um assunto que a todos interessa, creio eu, sinceramente e de todo o coração - a vida depois da morte.

Porventura hão-de questionar-se os meus leitores onde terei eu desencantado, um a um, os exemplares de uma tão rara e bizarra correspondência, onde terei por acaso encontrado um tão vasto e inusitado conjunto de cartas, na verdade, este mesmo cerebrino e extravagante conjunto que aqui vos apresento e de cuja vastidão muitos se contentariam em ter achado ou possuir apenas um e o mais humilde exemplar, sendo natural e especulável, segundo os poderes da nossa razão imaginativa, que todos aqueles a quem apenas uma destas epístolas fosse ou tenha sido dirigida, sem dúvida, esses já não terão vivido a sua vida, mas uma outra vida, completamente diferente, caso que, segundo os factos e pelo menos com os meios técnicos e materiais que hoje em dia possuímos, nunca poderemos desgraçadamente verificar, para grande infelicidade de tudo o que em nós aspira à maior realização de uma verdadeira ou idealizada justiça moral neste mundo.

É certo e verdadeiro, meu caro e respeitado leitor, que não houve nunca, até à data presente, notícia do registo de uma colecção deste género, nem sequer de quem, individualmente, fosse destinado a possuir apenas um  dos extraordinários exemplares que compõem este livro.

Uma pequena e parca série de cartas, meu perspicaz e pertinente leitor, mas que cartas!... Se fossem apenas três, já formariam um conjunto de certo modo incomensurável, dada a sua peculiar natureza.

Como terá oportunidade de verificar, meu distinto e muito estimado leitor, ninguém poderá ter a veleidade de que um tal conjunto literário lhe fosse exclusivamente dirigido. Eu mesmo confesso, não sem profunda tristeza, que esperei longos anos e com extremo cepticismo que alguma vez me viesse a ser dirigida uma destas epístolas tão pouco naturais. Você talvez estranhe que na primeira se cite Marco Aurélio e que a última se intitule Morangos Silvestres. Tal como eu, você talvez considere que isto mais se assemelha a uma qualquer espécie de literatura (de consolação ou de condenação, conforme os casos singulares de cada um destes exemplos), do que a uma não-natural colecção epistolar.

Como decerto virá a compreender pela sua própria experiência, dedicado e ilustre leitor, também considerei que os primeiros exemplares que me chegaram às mãos eram, como se costuma dizer, obras de ficção. Meditei longamente sobre os estranhos mas compreensíveis motivos de quem tivesse composto semelhantes bizarrias, na verdade, como se os autores destas cartas, ao invés de as terem dirigido e enviado, as tivessem inventado. Mas o que não deixa de ser curioso e digno de nota é que, ao mesmo tempo que assim suspeitava da verdade (com veemência e quase com desespero) desta literatura que me chegava às mãos, e ao mesmo tempo que especulava sobre os motivos e as intenções dos autores destes inverosímeis discursos, enquanto isto também prosseguia empenhadamente com as mais exigentes investigações e nem por um segundo poderei ser verdadeiro se negar que alimentava também a secreta mas firme esperança de vir a ser o improvável destinatário de uma destas terríveis e espantosas missivas. Algumas arduamente as procurei - de casa em casa, de ferro-velho em ferro-velho, de encontro em encontro, de conversa em conversa. Mas o certo é que os livros, neste caso, pouco ou nada me ajudaram, nem nenhuma espécie de literatura. Outras, confesso-o, desde já contando com a sua complacência e compreensão, roubei-as.

Mas foi um roubo à Robin Hood, em nome da dignidade da espécie humana.

Confesso que houve muitos episódios inenarráveis, verdadeiramente indescritíveis, que deixariam o nobre Aristóteles criador da teoria da verosimilhança à beira da necessidade de escrever uma nova poética. Mas são verdade, meu querido leitor, que lhe poderei dizer?

Há mais coisas nesta vida do que aquelas que cabem na nossa imaginação.

Porque mesmo os nossos delírios, isto é - mesmo os estados mais delirantes de todas as patologias possíveis da nossa razão especulativa - são suplantados pelas multiplicidades estapafúrdias e espampanantes que encontramos à solta na vida, sem conceito e sem freio que lhes possamos colocar ou aclopar, e por isso, meu caro e estimado e amado leitor, chegámos neste livro à nobre conclusão de que existe uma grande utilidade em delirar e que a finalidade do delírio pode mesmo atingir um valor insuperável. De um modo natural e previsível viemos a perceber que o delírio pode ser um precioso aliado na preservação e protecção da vida e exuberância do mundo, um destruidor messiânico de toda a seca e árida e oportunista pragmática do capitalismo e, enfim, o salvador do homem quanto ao seu pior inimigo, isto é - ele mesmo. Não se trata de megalomania. Verificámos, ao longo da nossa vida extremamente atribulada, e não sem um certo espanto, que a castração da razão delirante era afinal mais uma destas abundantes e prolíficas disciplinas da misoginia aplicada que pululam por todo o lado, entre a humanidade e desde os tempos mais remotos, sem que saibamos precisamente porquê.

Ah... Não julgue que escrevo de modo leviano.

«Que o temperamento, assim como as disposições naturais, que de bom grado se permitem um movimento livre e ilimitado (como a imaginação e a agudeza de espírito), necessitem em muitos aspectos de uma disciplina, toda a gente o admite facilmente. Mas que a razão, que tem por obrigação própria prescrever a sua disciplina a todas as outras tendências, tenha ela própria ainda necessidade de uma disciplina, pode parecer certamente estranho. E de facto escapou até hoje a uma semelhante humilhação, precisamente porque, devido ao ar solene e às maneiras imponentes com que se movimenta, ninguém podia suspeitá-la de um jogo frívolo, com imagens no lugar de conceitos e palavras em vez de coisas.» (1)

Observe as palavras do grande filósofo, entre todos, o mais admirável, e verifique como, de um modo sistemático e perfeitamente coerente, do ponto de vista dos afectos, o exigente moralista compõe, provavelmente sem uma consciência definida do facto, uma figura material e tangível para a faculdade da razão pura - «essa grande senhora». Nem mesmo Justine, n'Os Infortúnios da Virtude, do célebre Marquês de Sade, é tratada com uma tal mistura de crueldade, desejo, ferocidade e sentido de humor. E note bem, meu caro leitor, como a leviandade é sempre incompatível com a intensidade. Ambas podem ser manhosamente humorísticas, mas trata-se de um humor completamente diferente, em cada um dos casos. Se no primeiro caso o humor serve para fazer rir, para passar o tempo ou para aumentar a vaidade do humorista aos olhos do seu público complacente, no segundo caso o que caracteriza o humor é uma peculiar e inconfundível mistura entre elegância, desprendimento e ferocidade, como naquele episódio verdadeiro do condenado que, ao subir ao patíbulo, disse: «Pois é, a semana começa lindamente.» (2)

Mas retomemos o fio da nossa história, que é urgente concluir. O que poderá interessar, a si, meu distinto e delicado leitor, que tem outras aspirações muito mais elevadas, estas arestas do meu tortuoso, atormentado e obscuro carácter?

Um dia, caminhando por entre aquele terrível odor que têm as casas onde o único habitante morreu, principalmente quando morreu de velho e toda a casa se impregnou do cheiro e de hábitos cada vez mais difíceis e mais lentos, estendi o braço em direcção a uma estante e, ao acaso, guiado por uma força irresistível e física, sem pensamento ou intenção - apanhei uma carta.

Perguntar-me-á:

Como é possível?

Mas reserve o seu espanto.

Porque, quem sabe por se ter criado um boato ou alguma espécie de fama a respeito da minha pessoa no além-mundo, o que fez talvez com que se produzisse entre essa estranha mas familiar população o interesse geral e altamente contagioso por escrever um certo e determinado género de cartas, também houve aquelas que me foram dirigidas. Pois, tal como os poderosos rios que escavam montanhas, derrubando rocha e pedra, também é verdade que o nosso desejo escava mundos e abismos e muralhas nos limites entre os mundos.

Já seria por si só extraordinária maravilha apresentar esta exótica colecção de cartas aos leitores entusiasmados, interessados, estupefactos e extácticos, mas o mais admirável de tudo e para além de tudo o que a nossa imaginação seja capaz de compor é que a vida depois da morte parece ser tão pouco universal e, pelo contrário, tão múltipla, tão plural, tão singular e tão difícil de resumir em conceitos, descrições e explicações, como a vida antes da morte.

É por isso que o convido a ver com os seus próprios olhos, a ouvir com os seus próprios ouvidos e a pensar com a sua própria cabeça sobre tudo o que aqui se expõe.

Meu querido leitor, prometo-lhe: não mais o hei-de maçar com preâmbulos rocambolescos e certamente desnecessários, pelo menos até ao final deste livro.

Avancemos!


 

Giorgianna Houghton, «Invisible Beings», nº 67, 1873
 





(1) Todo este parágrafo pertence a Kant. Está na segunda parte da Crítica da Razão Pura, que se intitula «Doutrina Transcendental do Método», no primeiro capítulo, que por sua vez se intitula «A Disciplina da Razão Pura».

(2) Freud, Jokes and their relation to the Unconscious.