Carta de um espírito singular




Meu querido amigo, que não cheguei nunca a encontrar em vida, nem conhecer,

Sou um destes espíritos singulares que, recebendo a notícia de todo o seu interesse e mesmo da sua obsessão pela vida para além da morte, foi subitamente tomado de compaixão e decidiu escrever-lhe.

O esforço de escrever é porém tão contrário à minha natureza actualmente difusa que esta missiva terá de ser muito breve. Nem poderá você alguma vez publicá-la - e as razões para esta proibição tornar-se-ão imediatamente evidentes.

Em primeiro lugar, fique sabendo que morrer é a melhor coisa que existe, ainda que se morra no maior e no mais terrível sofrimento. Ainda que lhe cortem os braços e as pernas, um a um, e o deixem de olhos abertos e alerta enquanto o façam, morrer há-de ser uma alegria extrema e com uma qualidade inigualável.
 
Você não sabe, mas, comparada com a morte, a vida é um apertado colete de forças, uma rede de angústias e uma lenta e dolorosa intoxicação da alma e do corpo. Contra todas as aparências, os opiómanos, os cocainómanos e os alcoólicos são os que menos se intoxicam, afinal. Porque entre os vivos são aqueles que de mais perto experimentam a bela sensação da morte, esta indescritível viagem. É por isso que eles sofrem tanto para se pôr de novo em pé, quando se levantam do seu íntimo e invisível sobrevoo. Mas a diferença é que, para a morte, não há acordar. A morte é, enfim, a perfeita plenitude.

Como lhe hei-de explicar, meu querido amigo? A morte é só uma infinita diluição, como ser muito menos que uma gota de água, talvez ainda menos que uma partícula. Você talvez não saiba, mas é tão bom participar como um quase nada na ampla corrente veloz e sempiterna. Imagine que você se dilui, como um feixe de pequenas sementes num campo de flores. A morte é só um sobrevoo absoluto e infinito, como uma expansão abstracta sem intervalo.

Adeus.

Regresso à minha qualidade ínfima e volátil, que não admite palavras e muito menos um nome próprio.


Giorgiana Houghton, «Invisible Beings», 1874